Retenção de talentos: necessidade ou condicionamento? 

As publicações e eventos da contemporaneidade destacam com frequência que a Gestão de Pessoas deve ser pautada pelo reconhecimento e valorização de diferentes perfis e potencialidades dos profissionais, pelo estímulo ao desenvolvimento contínuo e pela construção de um ambiente que privilegie o bem-estar, a iniciativa e a inovação no trabalho.

Porém, compreende-se que é no mínimo um contrassenso que juntamente com todo esse movimento ainda sejam utilizadas palavras oriundas de uma lógica de controle comum no ambiente militar e no período da Revolução Industrial, como é o caso, por exemplo, de “recrutamento” e de “retenção”. 

No caso específico de “retenção”, o vocábulo tem o sentido de posse, poder, constrição e retardamento da iniciativa. Então, como é possível que por um lado se fale que as pessoas precisam ter espírito intraempreendedor e buscar oportunidades de desenvolvimento e melhoria na empresa se, por outro lado, há o desejo de segurar esses profissionais a qualquer custo?

O presente texto, então, desenvolve-se partindo dessa reflexão com foco em demonstrar que parte do sucesso de ter talentos que construam suas carreiras por longos períodos na empresa reside em práticas que priorizem, de fato, ações de liberdade, autonomia e aprendizagem.  

De acordo com Manucci (2008), os gestores das organizações constroem suas estratégias na empresa e percebem a realidade pautados em uma série de sistemas de crenças e ideologias que, por sua vez, impacta nos resultados obtidos. 

Ainda segundo Manucci (2008), se a forma de enxergar a realidade se orienta por uma perspectiva clássica dos primórdios do processo de industrialização, essa visão determinará intervenções hierárquicas, focadas no controle, na persuasão, na padronização. Por sua vez, a busca por um entendimento mais complexo do contexto privilegiando a real flexibilidade, criatividade e colaboração, contribuirá para decisões e práticas mais sistêmicas e coletivamente estimuladas. 

Nessa mesma linha, Chanlat (1991, p. 24) defende a necessidade de contestar uma “concepção instrumental, adaptativa, e mesmo manipuladora do ser humano” para valorizar as diferentes, complexas e ricas experiências humanas no cotidiano. 

Não à toa, têm ganhado força abordagens como a chamada Gestão 3.0, que, segundo Henrique (2008), se baseia no fato de que todas as organizações são redes, mesmo que estejam desenhadas enquanto hierarquias, e que o gerenciamento dessas redes deve reconhecer o protagonismo das pessoas e dos relacionamentos ao invés de privilegiar a divisão em departamentos e os lucros. Nesse caminho de olhar de fato para pessoas e relacionamentos, a gestão precisa estar preocupada em energizar as ações e competências das pessoas em torno de propósitos claros, objetivos compartilhados, estruturas de comunicação e movimentos de melhoria constante. 

O discurso sobre perspectivas como a Gestão 3.0 faz parte do dia a dia de vários executivos, mas a distância entre teoria e prática infelizmente também é muito comum. Mesmo quando há intenção de consolidar um ambiente de trabalho flexível, colaborativo e aberto a ideias, mudanças e singularidades, muitos líderes ainda perpetuam uma cultura empresarial que cultiva o foco na competição por resultados, nas ações de curto-prazo, além do medo de estimular o desenvolvimento de profissionais que não continuarão na empresa e irão para uma organização concorrente, vista como “inimiga” a ser abatida, como em um cenário de guerra. 

Compreende-se que é fundamental, então, olhar mais profundamente para as maneiras e os caminhos com que os processos de comunicação têm ocorrido no ambiente corporativo e que tipo de comportamentos e condicionamentos eles têm privilegiado.

Chanlat e Bédard (1996) alertam o quanto é temerário que, apesar de ideias de sucesso serem glorificadas e de se perpetuarem estímulos para que as pessoas inovem e participem, haja uma desconfiança e um receio da proporção que essas articulações podem tomar nas conversas e atitudes do dia a dia. Ou seja, por fim, as pessoas que se silenciam e se conformam acabam sendo motivo de tranquilidade enquanto as criativas e dinâmicas perturbam. 

Os autores também chamam a atenção para o uso e a reiteração excessiva de palavras que parecem ter um “poder mágico” ou serem “fórmulas-de-choque” para a ação e o condicionamento, como excelência, qualidade, administração do tempo, missão. Segundo eles, o foco está mais em elaborar, destacar e difundir os discursos prontos e as metas desejáveis do que analisar o cotidiano e preocupar-se com o “[…] estabelecimento das condições materiais e sociais que lhes permitam produzir os resultados, como se o valor de encantamento da repetição fosse suficiente” (Chanlat; Bédard, 1996, p. 141). 

Posturas como essas revelam o desejo de demonstrar superioridade e controle, e evidenciam a falta de consideração pelas vontades e pela inteligência de cada ser humano. Não à toa, como ainda apontam Chanlat e Bédard (1996, p. 141), “os empregados não se deixam lograr facilmente e, para demonstrar consciência da distância existente entre o discurso e os fatos, criam uma língua popular” na forma de gírias, provocações, expressões veladas para demonstrar sarcasmo e rejeição, além, é claro, daqueles que saem da organização. 

Diante de todo o exposto, entende-se que é importante cuidar especialmente de duas questões quando há uma preocupação real com a Gestão de Pessoas em um ambiente de trabalho pautado pela qualidade de vida, pelo bem-estar, pela boa-convivência e, consequentemente, pela continuidade dos talentos na empresa.

Em primeiro lugar, é interessante fazer uma análise responsável e criteriosa sobre as práticas de gestão adotadas e os aspectos visíveis da cultura empresarial para identificar o alinhamento desses pontos com os valores e os objetivos almejados para a organização. Será que há coerência entre o que é tido como responsável, o que é buscado, o que é difundido e o que é praticado? 

Em segundo lugar, destaca-se a conscientização sobre os discursos e linguagens empregados no dia a dia. Eles estimulam, de fato, a saúde das relações e das mudanças ou reiteram formas de controle e massificação? Quais são as possibilidades de substituição e transformação da comunicação que podem ser adotadas no cotidiano para privilegiar o respeito às singularidades e o dinamismo inerente à vida? Questionamentos como esses são basilares para que as pessoas se sintam motivadas a ficar em uma empresa, e não apenas obrigadas enquanto buscam outra oportunidade. 

O artigo foi estruturado como um convite reflexivo para pautar atitudes em Gestão de Pessoas que privilegiem, sempre que necessário, uma autoanálise honesta e embasada sobre o que está sendo buscado na empresa por meio dos talentos, pelos talentos e para os talentos, ao invés de simplesmente fazer ou reiterar proposições comuns no discurso do dia a dia e não necessariamente agregadoras e inteligentes. Espera-se, com esses e outros exercícios, a multiplicação de práticas humanizadas e responsáveis em Psicologia Organizacional.

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